Ressuscitando o que nunca morreu:<br>«duas velocidades» e «núcleo super - integrado periferia»

Sérgio Ribeiro

Na cha­mada «cons­trução eu­ro­peia», não me pa­rece pos­sível (ou sério…) tratar das suas ac­tuais ten­dên­cias sem re­cuar pelo menos até à dé­cada de 70, ao des­man­te­la­mento do «sis­tema mo­ne­tário» ca­pi­ta­lista, criado no pós-guerra e às ten­ta­tivas de o com­pensar com me­ca­nismos ou um sis­tema re­gi­o­nais, como re­sul­taria do re­la­tório Werner (que, an­te­rior ao alar­ga­mento de 6 para 9, apon­tava para uma UEM e para uma moeda única até 1980!), ini­ci­a­tiva que se viria a re­duzir a um «sis­tema mo­ne­tário eu­ropeu» mi­ni­ma­lista, que se jun­tava a um Fundo Eu­ropeu de Co­o­pe­ração Mo­ne­tária, de 1972, logo de­pois da de­cisão de Nixon, de Agosto de 1971, de tornar in­con­ver­tível o dólar, e assim fazer des­mo­ronar o que vinha de Bretton-Woods (acordo de 1944 entre 45 países).

É também após essa de­cisão uni­la­teral dos EUA que o re­la­tório Tin­de­mans cumpre in­cum­bência das então cha­madas ci­meiras da CEE – reu­niões oca­si­o­nais de chefes de Es­tado e de Go­verno, antes da ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação do Con­selho Eu­ropeu –, e o seu co­nhe­ci­mento tem acres­cido sig­ni­fi­cado no ac­tual mo­mento (his­tó­rico). Para além da de­fi­nição de vá­rias li­nhas de es­tru­tu­ração (como a eleição di­recta para o Par­la­mento Eu­ropeu) e de acção, que en­troncam na de­riva ne­o­li­beral e mo­ne­ta­rista do im­pe­ri­a­lismo do final dos anos 70/​co­meço dos anos 80 e que estão re­fe­ridas na his­tória «ofi­cial» da in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ro­peia, esse re­la­tório apon­tava para uma es­tra­tégia de «duas ve­lo­ci­dades» as­sente numa di­visão dos es­tados-mem­bros em um nú­cleo super-in­te­grado e uma pe­ri­feria, sendo o nú­cleo super-in­te­grado for­mado pelos es­tados «fun­da­dores», com a pre­va­lência de um di­rec­tório in­formal franco-alemão, que desde o início marca o pro­cesso. Acon­tece que a es­tra­tégia então de­se­nhada é pouco co­nhe­cida, até porque não re­fe­rida na tal his­tória «ofi­cial», e é sempre ocul­tada por uma pe­neira.

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Pode, no en­tanto, afirmar-se que na dita «Eu­ropa» não havia, então, uma pe­ri­feria. Esta co­meça a ter al­guma ex­pressão quando à Ir­landa, que en­trara em 1972 com o 1.º alar­ga­mento, e ao Sul da Itália, se vi­eram juntar, pri­meiro, a Grécia e, de­pois, a Es­panha e Por­tugal.

Só a 12 se fez a re­visão do Tra­tado de Roma, as­si­nado por seis, e se fez avançar a di­nâ­mica do mer­cado in­terno, com a com­ple­men­ta­ri­dade (no Acto Único) de um prin­cípio de co­esão eco­nó­mica e so­cial, não só re­sul­tado da re­lação de forças so­ciais mas também com a in­tenção de evitar o agra­va­mento para ní­veis in­su­por­tá­veis das as­si­me­trias e de­si­gual­dades que a di­nâ­mica do mer­cado in­terno ne­ces­sa­ri­a­mente pro­vo­caria. Assim se cri­ando um grupo de países cha­mado «da co­esão».

O facto, que hoje é im­por­tante lem­brar, é que, no início de 1979, antes dos alar­ga­mentos, en­trou em vigor o re­fe­rido «sis­tema mo­ne­tário eu­ropeu», com uma «uni­dade de conta» (o ECU,  média pon­de­rada das mo­edas na­ci­o­nais) e um «me­ca­nismo de taxas de câmbio» (MTC), que as faria ser­pen­tear num túnel, sis­tema que iria vi­gorar até ser subs­ti­tuído pela moeda única e o Banco Cen­tral Eu­ropeu na União Eco­nó­mica e Mo­ne­tária.

As (es)for­çadas ten­ta­tivas que le­varam a estas mu­danças foram pa­ra­lelas a ou­tras mu­danças e alar­ga­mentos, que pros­se­guiram e cri­aram a si­tu­ação de, por um lado, i) se ter fe­chado a orla pe­ri­fé­rica em redor de um nú­cleo cen­tral, o não for­ma­li­zado nú­cleo super-in­te­grado, com a Ale­manha re­for­çada pela ex­tensão a Leste, por ter­ri­tório alar­gado e também por uma pe­ri­feria nesse ponto car­dial, e, por outro lado, ii) se acen­tuar a ten­dência fe­de­ra­lista com a cri­ação da UEM e os passos (al­guns frus­trados) para uma União Po­lí­tica na es­teira das Con­fe­rên­cias Inter-Go­ver­na­men­tais (CIG) que se re­flectem no Tra­tado de Ma­as­trich, e este con­sagra, com todas as di­fi­cul­dades e con­tra­di­ções pró­prias do pro­cesso his­tó­rico e do fun­ci­o­na­mento do ca­pi­ta­lismo.

Na pas­sagem do «sis­tema mo­ne­tário eu­ropeu» à UEM, es­ti­veram sempre sub­ja­cente as «duas ve­lo­ci­dades» e o «di­rec­tório», com uma ten­dência não es­ca­mo­teável de que a União Eu­ro­peia teria de cons­truir me­ca­nismos e ins­tru­mentos que, em­bora fe­de­ra­li­zantes (e a moeda única e o BCE são ins­tru­mento e en­ti­dade fe­de­ra­listas), se adap­tassem aos di­fe­rentes ní­veis, por mais únicos que se afir­massem esses me­ca­nismos e ins­tru­mentos.

Nos tra­ba­lhos da co­missão do PE que fora criada para acom­pa­nhar a cri­ação da moeda única foi evi­dente que os cri­té­rios no­mi­na­tivos, sempre afir­mados rí­gidos e in­fle­xí­veis, dei­xa­riam de o ser, ga­nha­riam fle­xi­bi­li­dade e até per­mis­si­vi­dade, para en­trarem na UEM mo­edas de es­tados-mem­bros do «centro» que os não cum­prissem (caso da franco francês e do pró­prio marco), por terem ten­dência a cumpri-los…, en­quanto ou­tros es­tados da «pe­ri­feria» que, com grande sa­cri­fício de con­quistas so­ciais dos seus povos (como era o caso de Por­tugal), cum­prissem os cri­té­rios po­de­riam não ser «aceites» por esses re­sul­tados não serem con­si­de­rados «sus­ten­tá­veis»!

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Essa po­sição e con­tra­dição teria sido su­pe­rada pela adopção de um pacto, o PECPacto de Es­ta­bi­li­dade e Cres­ci­mento – de 1997, que re­pre­senta «o en­qua­dra­mento re­gu­la­mentar para a co­or­de­nação das po­lí­ticas or­ça­men­tais na­ci­o­nais na União Eco­nó­mica e Mo­ne­tária (UEM). O PEC foi es­ta­be­le­cido com o ob­jec­tivo de sal­va­guardar a so­lidez das fi­nanças pú­blicas, in­dis­pen­sável ao bom fun­ci­o­na­mento da UEM, e com­porta uma ver­tente pre­ven­tiva e uma ver­tente dis­su­a­sora» (como se pode ler na his­tória «ofi­cial» na net).

Não há, por­tanto, «no­vi­dades». Nem na sigla PEC…

O que há, e é ne­ces­sário en­carar com grande atenção, é um re­forço das ver­tentes pre­ven­tiva e dis­su­a­sora, não se fi­cando esta por avisos e even­tuais san­ções, e outro tipo de in­ter­venção sobre os or­ça­mentos na­ci­o­nais, como ins­tru­mentos pri­vi­le­gi­ados da es­tra­tégia dos in­te­resses do­mi­nantes. Também o ob­jec­tivo cen­tral da cri­ação da UEM, a es­ta­bi­li­dade fi­nan­ceira, pode estar a ser con­si­de­rado não con­cre­ti­zado, ou con­cre­ti­zável, dada a pre­sença na moeda única de mo­edas de al­gumas «eco­no­mias na­ci­o­nais» não sus­ten­tadas fi­nan­cei­ra­mente, não obs­tante todas as van­ta­gens nas re­la­ções centro-pe­ri­feria que já dela ob­ti­veram os países do «centro», numa cres­cente in­ter­de­pen­dência entre os es­tados com evi­dente agra­va­mento das as­si­me­trias («in­ter­de­pen­dência as­si­mé­trica»).

Sendo este um tempo his­tó­rico de en­cru­zi­lhada, há que não perder de vista os ca­mi­nhos que a ela nos trou­xeram. E, a partir daí, pro­curar ver quais os ce­ná­rios pos­sí­veis.

Não se pode, por isso, deixar de su­bli­nhar a per­cepção de que a pre­sença das mo­edas dos países pe­ri­fé­ricos no euro, com um es­ta­tuto igual ao do marco, não é – e nunca foi – pa­cí­fica para os in­te­resses que pre­do­minam na po­sição po­lí­tica que a Ale­manha (e países da sua zona de in­fluência mo­ne­tária) in­ter­preta. O que muito con­di­ciona ou de­ter­mina esses ce­ná­rios.

Como, num outro plano, a si­tu­ação na luta de classes (que é a His­tória, en­quanto houver classes) também o faz. E, aí, temos um papel a re­pre­sentar.

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Há que ter também em atenção que a cri­ação do euro não obe­deceu, tec­ni­ca­mente, a pres­su­postos que se possam con­si­derar con­sis­tentes:

1. não foi criada, se­quer nos seus pro­le­gó­menos, uma zona mo­ne­tária «óp­tima»;

2. a di­nâ­mica da ser­pente no túnel com um es­trei­ta­mento pro­gres­sivo das mar­gens de os­ci­lação das taxas cam­biais não MTC não fun­ci­onou, antes se in­verteu em 1993 e obrigou a adiar os prazos antes mar­cados (ver ilus­tra­ções);

3. a de­fi­nição das taxas cam­biais para os países que iriam en­trar no euro, foi feita sem sal­va­guardar in­te­resses na­ci­o­nais muito de­ter­mi­nantes das suas so­be­ra­nias (Por­tugal, com as suas ac­ti­vi­dades de ex­por­tação e de tu­rismo, so­freu um duro golpe pela so­bre­va­lo­ri­zação do es­cudo antes da sua ab­sorção no euro).

 

(do livro Dé­cadas de EU­ROPA, Sérgio Ri­beiro, edição do autor, 1994)



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